terça-feira, 17 de abril de 2007

Memórias de um Bancário

(Os personagens são fictícios, embora, os factos sejam reais. Abrange os anos lectivos de 1935/1936 até 1938/1939).

Para mim e para todos os ferrugentos, nados e criados em Angola, o achar um emprego, era uma autêntica fortuna. Um rebuçado que poucos tinham a sorte de chupar.

E, ir além da 4ª classe primária, até aos anos de 1940, era obra para gigantes das classes humildes – trabalhadores braçais, agricultores –. Ou eram isso mesmo ou não eram nada.

Embora me esteja a cingir a factos que decorreram nas Colónias Portuguesas, devo, em abono de elementar justiça, informar os possíveis leitores de que a distinção de classes e o apuramento de elites sociais, não eram coisa peculiar dos portugueses. Tratava-se sim dum imperativo das “consciências da época”. Era assim em Portugal e era também na Suécia, etc. etc.

Até àquele ano longínquo 1935, mercê de homens ilustrados idos para a Huíla (Lubango) e até residentes, civis e militares – patriotas ardentes e dedicados, até ao sacrifício das mais caras regalias, começaram a despontar Escolas Primárias, de Artes e Ofícios e até Escola Primária Superior, oficialmente criadas e dotadas. As Artes e Ofícios (também chamadas laicas) destinavam-se, essencialmente, à instrução e aprendizagem de ofícios de arte comum: alfaiates, carpinteiros, serralheiros, mecânicos, etc., para órfãos e para todos os naturais que o desejassem sem quaisquer encargos para as suas bolsas.

Estas escolas laicas estavam providas de docentes excepcionalmente conhecedores e dedicados. Ensinavam quanto podiam e sabiam. E muitos milhares de operários negros e chefes de oficina delas saíram e se lançaram com êxito na vida. Porém, as Missões Católicas, também prepararam centenas e centenas, porque a sua acção vinha já de dezenas de anos antes e com vantagem, visto ministrarem conjuntamente a Religião.

As Missões laicas ou Escolas laicas foram uma tentativa para substituírem as Missões Religiosas que, entretanto, começaram a ser, também, Protestantes - Evangélicas, Adventistas e Sabatistas.

Apesar da existência da Igreja Católica ser mais antiga e, embora o ecumenismo não fosse coisa prevista, é de realçar o civismo que caracterizou ao longo de tantos anos a coexistência pacífica das seitas religiosas... naquele ultramar...

A acção missionária era heroicamente trabalhosa e poucos portugueses, mesmo os de lá, se aperceberam disso. Há santos que talvez nunca sejam canonizados, que morreram devido a terem ido, tão cheios de espírito de entrega que, desde que chegaram, nunca mais deram uma única hora de descanso ao corpo.

Pessoalmente, conheci um, de nacionalidade francesa, Padre Florêncio. Com pouco mais de 23 anos lançou-se através das montanhas da Chela, às senzalas mais recônditas, arrastando as vestes paramentais e o viático sobre uma bicicleta, passando longos dias e noites sem regressar à Missão. Tentava abarcar e ganhar todas as almas ao mesmo tempo dos Muilas e dos Mucubais. Não resistiu a tanto fogo interior e lá ficou no cemitério da Missão. Para muitos terá sido um simples vulto que perpassou. Para mim foi um exemplo de humildade e de entrega impressionante, indelével. Sem que para isso tenha feito qualquer esforço, influenciou-me a pontos de lhe dever a possibilidade de estar a trazer à luz toda a minha obscura existência de profissional, pois aos 12 anos, depois do exame de admissão, pedi permissão ao meu Pai para ir aprender uma profissão e, como as possibilidades paternas eram muito anémicas e a Missão Católica do Tchivinguiro possuía, para os filhos dos negros da região, oficinas de aprendizagem de alfaiataria, sapataria, serralharia eu iria escolher e trabalhar numa delas. Foi então, que o bom Padre Florêncio me emprestou um livro para eu ler. Li-o em uma semana. Era volumoso. Quando lho devolvi e lhe referi algumas passagens do mesmo, disse-me apenas: “Vais continuar a estudar”.

Fui então transferido para a Missão da Huíla e até comecei a freqüentar, já por conta da Missão, uma Escola Preparatória para o Ensino Secundário. Já com 14 anos de idade fui submetido a provas e passei para o 3º ano com uma boa classificação em Latim, História e Português. Mas este estabelecimento não dava equivalência ao Ensino Oficial.

Entretanto, a fuga da Missão de dois alunos e o isolamento dos restantes, incluindo-me, modificou o curso da minha vida...

(O relato fica por aqui e deve ter sido escrito já nos anos oitenta).

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